O amor não vêm sozinho
(não é exatamente sobre solidão, mas também não é exatamente sobre outra coisa)
existe um tipo específico de solidão que não aparece nas estatísticas nem nos poemas de amor não correspondido.
é a solidão de quem, mesmo sendo amado, mesmo estando cercado, mesmo ouvindo que é importante, não consegue acreditar nisso com o corpo inteiro.
uma solidão que não grita.
mas que cochicha, com voz conhecida: “talvez seja só gentileza”.
“talvez seja só tolerância”.
“talvez você esteja interpretando mal a cena”.
não é drama.
também não é ingratidão.
é só um desalinho interno entre o que chega e o que se consegue assimilar.
como se o amor viesse numa língua estrangeira, e a gente tivesse aprendido a traduzi-lo errado desde o começo.
(tem dias em que eu não me sinto exatamente triste)
também não é que eu esteja feliz.
é uma coisa meio sem nome, um desconforto em plano de fundo. como música ambiente de elevador — não chama atenção, mas tá ali, tocando.
uma sensação de que tem algo fora de lugar, mas você não consegue apontar o que é.
tem dias em que o amor parece um presente que entregaram na minha mão por engano.
tipo: “ih, desculpa, era pro apartamento de cima.”
é isso.
uma sensação constante de que me colocaram no grupo errado, de que o carinho que recebo vai ser cobrado depois, ou que alguém lá na central de atendimento vai descobrir que eu estou usufruindo de um tipo de afeto que claramente não era pra mim.
e é estranho dizer isso porque, ao menos na superfície, eu sou uma pessoa bem resolvida. eu trabalho, tenho amigos, faço terapia (olha aí o clichê), tento dar conselhos bons. mas quando a noite chega — e é sempre à noite, né? — a pergunta volta.
será que alguém realmente gosta de mim ou só estão me aguentando?
parece drama, eu sei.
mas é só o jeito como meu cérebro aprendeu a preencher os silêncios.
e mesmo assim, esse pensamento insiste.
não todo dia, mas o suficiente pra ser familiar.
como se minha cabeça tivesse sido programada pra duvidar do afeto.
(uma tentativa de explicação psicológica que você pode pular)
segundo alguns psicólogos — e aqui não cito nomes só pra fingir que sei do que tô falando —, isso tem a ver com “esquemas disfuncionais precoces”, que é um jeito técnico de dizer que você, criança, entendeu tudo errado sobre o amor.
mas entendeu errado por sobrevivência, não por burrice.
você cresceu num ambiente em que carinho vinha com condição, com ausência, com susto, com silêncio, com comparação, com sumiço.
então você aprendeu que afeto não é direito, é prêmio.
e se é prêmio, tem que merecer.
e se tem que merecer, você passa a vida inteira se perguntando se foi bom o bastante hoje.
aí alguém te ama — ou diz que ama — e você entra em pânico.
porque não tem como isso estar certo.
tem alguma pegadinha.
uma cláusula escondida.
um “te amo, mas...”.
então você sabota.
ou foge.
ou vira uma versão insuportável de si mesmo só pra testar até onde o outro aguenta.
quando ele vai embora, você diz: sabia.
quando ele fica, você pensa: é questão de tempo.
tem um nome pra isso, não?
tem.
mas prefiro não dizer.
às vezes os rótulos ajudam. outras, só organizam a dor numa caixa bonita.
(pausa para a metalinguagem despretensiosa)
sei que esse texto parece meio bagunçado.
é que hoje eu só queria escrever como quem desabotoa a calça depois de um dia inteiro fingindo que tá tudo bem.
sem argumento central.
sem estrutura de ensaio aprovada por banca acadêmica.
só umas frases que, quem sabe, encaixem com o que alguém também sente e ainda não conseguiu colocar em palavras.
tô escrevendo tudo em minúscula porque não quero parecer mais importante do que sou.
tem dia que a gente não cabe nas regras.
tem dia que a gente só quer existir sem estar certo.
(o que acontece quando a gente começa a olhar pra si com menos julgamento?)
eu tenho tentado isso.
não o autoamor forçado, do tipo “me amo acima de tudo”, porque, honestamente, tem dias em que não me suporto.
mas uma espécie de convivência mais justa comigo mesmo.
perceber quando estou me culpando sem motivo.
quando estou tentando prever o que o outro sente por medo de ser pego de surpresa.
quando estou interpretando uma ausência como sinal de desinteresse, e não como o que ela pode ser de verdade: uma ausência. só isso.
será que é possível desenvolver uma escuta interna que não seja cruel?
e se a voz que me diz “eles não gostam tanto assim de você” não for minha, mas uma herança emocional que nunca revisitei?
(a parte em que tudo fica mais séria, mas não necessariamente mais triste)
quando eu era criança, aprendi com alguns episódios da minha vida a desconfiar do amor.
não porque fui maltratado o tempo todo — muito, muito longe disso.
mas porque muita coisa boa vinha misturada com susto, cobrança, silêncio, e regras que eu nunca entendi direito.
muito do que me deram era amor, sim — mas um amor ansioso, atravessado, cheio de medo, de expectativa, de exigência.
e eu entendi, do jeito que dava, que amar era algo que podia machucar.
hoje, com mais de trinta, tento desaprender.
às vezes consigo.
às vezes quase.
às vezes nem um pouco.
mas tenho notado que a maior mudança acontece nos dias em que eu consigo ficar.
ficar mesmo com medo.
ficar mesmo com a voz interna dizendo que tô estragando tudo.
ficar mesmo querendo correr.
ficar e dizer pra mim mesmo: calma, talvez isso aqui não seja um teste.
e mais do que isso: tenho aprendido que o amor, quando vem, nunca vem sozinho.
ele traz junto as bagagens, os ruídos, os fantasmas, as defesas, as cicatrizes de quem oferece e de quem recebe.
ninguém ama do zero.
ninguém ama limpo.
ninguém ama sem tropeçar nas dores que vem carregando.
mas isso não torna o amor menor.
torna ele mais humano.
e às vezes, a falta que eu sinto não é ausência do outro.
é só saudade de uma versão de mim que ainda não aprendeu a ser olhada sem se esconder.
(o começo de um outro lugar)
eu não acredito mais em cura total.
desconfio de narrativas em que o trauma vira tese de superação.
mas acredito em espaços mais habitáveis dentro de nós.
espaços onde não precisamos provar que valemos.
onde podemos existir sem performance.
onde amar não é cálculo, e ser amado não é um susto.
esses espaços, às vezes, aparecem em relações.
mas, quase sempre, precisam ser construídos dentro da gente.
e isso dá trabalho.
exige que a gente questione os padrões que internalizou.
exige que a gente aceite que talvez o amor nunca vá soar totalmente seguro — mas que, ainda assim, pode ser vivido.
a liberdade afetiva, pra mim, tem sido isso:
reconhecer o medo e não deixar que ele dirija a história.
ficar, mesmo com vontade de fugir.
ou ir embora, sem se sentir culpado por não caber mais.
e, talvez o mais difícil: receber um gesto de carinho sem achar que ele é um erro.
(finalzinho – ou o que restou do peito depois de escrever isso)
uma vez li — não lembro onde — que tudo o que é profundamente humano se comunica, mesmo que não se entenda.
e talvez seja isso que eu esteja tentando fazer aqui:
me comunicar com quem sente parecido, mesmo que a gente não saiba explicar exatamente o quê.
a ideia de que todo mundo merece amor é bonita.
mas talvez o que a gente precise lembrar é que aceitar esse amor também exige coragem.
exige uma reeducação do olhar.
um processo de se colocar no mundo sem medo de estar ocupando espaço demais.
às vezes, escrevo esses textos pra lembrar que o que sinto não é isolado.
que tem mais gente aí, tentando entender por que a presença dos outros não apaga o sentimento de estar sozinho.
e que essa sensação, embora desconfortável, não precisa ser vivida como falha pessoal.
eu não sei se um dia vou me sentir plenamente digno de amor.
mas talvez o ponto nem seja esse.
talvez o amor mais bonito que a gente vive não é aquele em que a gente tem certeza de tudo, mas aquele em que a gente permanece mesmo sem saber.
então, se você também sente que tá atrapalhando, que falou demais no último encontro, que ninguém te ama como deveria, que você estragou tudo, que não vale tanto assim, que vai ser deixado, que exagerou…
fica.
respira.
encosta a cabeça no travesseiro sem responder a essas perguntas todas de uma vez.
elas vão voltar amanhã.
mas amanhã você talvez já esteja um pouco mais disposto a duvidar delas também.
e só isso já é muito.
é só lembrar: o amor não vem sozinho. e isso é muito mais bonito do que se parece, mesmo em letra minúscula.